A engenheira da Universidade de São Paulo, idealizadora de uma das maiores feiras de ciências do país, diz que falta de infraestrutura ou de professores com formação específica não é impeditivo para o ensino do método científico aos alunos
FLÁVIA YURI OSHIMA / ÉPOCA
“A criança faz as perguntas certas. A
gente é que desaprende a enxergar isso”, diz Roseli de Deus Lopes, engenheira e professora da escola Politécnica da Universidade de São
Paulo, no departamento de sistemas eletrônicos. Roseli foi a idealizadora
da Feira Brasileira de Ciencias e Engenharia, a Febrace, que este ano completou
14 anos. O evento reúne projetos de alunos de escolas públicas e privadas do
ensino fundamental e médio de todo o país. Uma vez por ano, esses projetos são
exibidos e explicados durante três dias na USP para um público que reúne
universidades, empresários e outros alunos. Os projetos apresentados na feira
(gratuita) já rodaram o mundo, ganharam prêmio e mudaram a trajetória de
alunos, professores e comunidades inteiras. Na entrevista a seguir, a
professora Roseli de Deus Lopes defende que não é preciso dinheiro nem recursos
supermodernos para o (bom) ensino de ciências, computação e matemática. Vontade é o material necessário, diz ela. A professor defende, entre
outros pontos, que mesmo professores com formação deficitária fazem a diferença quando se
envolvem com as ideias das crianças.
ÉPOCA - Como surgiu a ideia de montar uma feira de
ciências?
Roseli de Deus Lopes - Há
15 anos, percebemos que para estimular jovens a irem para a universidade,
precisaríamos atuar na educação básica. Eles não sabem que são supercriativos e
que têm esse potencial todo para ser mostrado aqui. Fizemos uma pesquisa e
identificamos que mesmo as escolas que faziam os melhores trabalhos em ciências
tinham uma questão: os trabalhos nessas escolas eram muito mais de
reprodução. O professor mostrava uma tecnologia e o aluno montava
alguma coisa muito parecida com aquilo só para ilustrar. Não era um movimento
em que se tenta buscar os problemas e uma solução para eles. Era o oposto. Eles
buscavam problemas que fizessem sentido para aquela tecnologia que já estava
desenvolvida. Então, era um raciocínio às avessas, de colônia mesmo. A receita
já vem de outro lugar, você monta e ensina as pessoas a usarem. A gente percebeu
que o problema era anterior a esse. Não era uma questão de aprender a usar a
tecnologia, mas, sim, o de provocar um olhar mais observador por parte
do aluno para que ele identifique os problemas e aí o uso das tecnologias vem
mais naturalmente. Partir do problema é um jeito de fazer as disciplinas da
escola fazerem sentido na vida. Para que eu vou querer biologia? Não é só para
passar numa prova, ou num vestibular. Eu tenho de perceber o valor que
aquilo tem para a minha vida.
ÉPOCA - Esse foi o critério para selecionar os
trabalhos que poderiam participar da feira?
Roseli - Sim. O objetivo da Febrace
não era ser grande, mas, sim, ser representativa. Queríamos ver o que está
acontecendo nas escolas públicas e privadas deste país afora. Começamos a desenvolver
uma série de materiais e de ações para estimular as escolas a adotar esse tipo
de trabalho e a realizar pequenas feiras internas para estimular esse ambiente.
As feiras de projetos são importantes porque são um espaço de troca. A
gente aprende observando o que o outro está fazendo.Criamos um curso online
que mostra o que é fazer um projeto, e o que é o método da pesquisa
tecnológica. É um curso que indicamos tanto para os professores quanto para os
alunos. Preparamos os cursos online colhendo materiais nas feiras. Então, nesse
curso online, há exemplos de pessoas que fizeram projetos em diferentes
situações. Adotamos uma linguagem simples e bem voltada para a prática. Nossa
preocupação é que ele vá colocando em prática de acordo com a complexidade que
cada faixa etária permite, ao invés de ele se aprofundar demais na teoria e
perder o fio da meada na prática.
ÉPOCA - O alvo são as crianças de qual idade?
Roseli - Nós fizemos
o curso numa linguagem simples que mesmo crianças já alfabetizadas a partir do
fundamental I (6 anos de idade)já acompanhem. A ideia é que o
professor faça o curso primeiro e ele mostre o mesmo material para orientar os
alunos. O papel principal do professor é em relação às questões de segurança e
de ética na pesquisa. A criança é tão curiosa e tão criativa que às vezes
propõe ações e formas de investigar as hipóteses que formulam que podem
colocá-la em risco físico ou em risco emocional. Imagine se ela elabora um
questionário que possa colocá-la em situações constrangedoras. A ideia é que o
aluno faça um plano de ação e procure um professor ou um outro adulto que possa
orientá-lo e que avalie se as perguntas e as suposições estão bem formuladas,
ou se os materiais que eles teriam de usar estão disponíveis na escola e se
apresentam algum risco na manipulação. Como eles têm de viajar, nos
concentramos na faixa etária de 13 a 20 anos. Mas, incentivamos que nas escolas
e nos municípios, eles trabalhem com todas as faixas etárias. A criança
nasce cientista, nasce engenheiro e tecnologista e a escola ruim é que o cala.
Ela mata a curiosidade, mata a capacidade de a criança observar.
ÉPOCA - Como as crianças vêm parar aqui? Vocês vão
até eles ou é um movimento que parte da escola ou do aluno?
Roseli - Hoje temos uma rede diversa. Ao
longo desses anos, fomos credenciando feiras. Metade dos alunos vem por
submissão direta e a outra metade vem através de outras feiras. Pelo ambiente
virtual mantemos o contato e o estimulo às escolas e aos alunos que se
interessam em participar. Então, quando o aluno traz alguma questão que o
professor não consegue resolver, ele recorre à comunidade Febrace para buscar o
apoio de alguém. A gente também recomenda que ele busque em sua
própria comunidade esse apoio: na universidade da cidade ou na escola técnica
que pode ter peritos naquele assunto. A ideia é que as escolas peçam inclusive
ajuda para usar a estrutura da universidade para seus testes de hipótese.
Há situações, ainda, que o movimento parte totalmente do aluno. Se ele quer participar e não consegue o suporte da escola (sim, existe isso), ele procura ajuda fora para montar o seu projeto. Numa edição da feira, demos um microscópio como prêmio para um determinado projeto. Avisamos que o aparelho não era para as crianças, mas, sim, para a escola. Quando chegou o final, muito delicadamente, as crianças me chamaram para dizer que tentaram uma professora na escola, mas não encontraram ninguém que quisesse ajudá-las, nem mesmo a direção da escola. Então, pediram ajuda para uma vizinha que estava começando a fazer engenharia em Maringá, no Paraná. Por isso, eles não queriam levar o prêmio para a escola porque achavam que a diretora trancaria o aparelho no depósito e desdenharia do prêmio. Eu os convenci que esse seria mais um motivo para eles levarem o prêmio para a escola, para mostrar do que foram capazes e de como era importante dar apoio aos alunos.
Há situações, ainda, que o movimento parte totalmente do aluno. Se ele quer participar e não consegue o suporte da escola (sim, existe isso), ele procura ajuda fora para montar o seu projeto. Numa edição da feira, demos um microscópio como prêmio para um determinado projeto. Avisamos que o aparelho não era para as crianças, mas, sim, para a escola. Quando chegou o final, muito delicadamente, as crianças me chamaram para dizer que tentaram uma professora na escola, mas não encontraram ninguém que quisesse ajudá-las, nem mesmo a direção da escola. Então, pediram ajuda para uma vizinha que estava começando a fazer engenharia em Maringá, no Paraná. Por isso, eles não queriam levar o prêmio para a escola porque achavam que a diretora trancaria o aparelho no depósito e desdenharia do prêmio. Eu os convenci que esse seria mais um motivo para eles levarem o prêmio para a escola, para mostrar do que foram capazes e de como era importante dar apoio aos alunos.
ÉPOCA - Qual é a resposta hoje de quando as escolas
e alunos pedem ajuda nas universidades?
Roseli - Há 14
anos, eu diria que era difícil receber esse retorno. Mas com o tempo,
conseguimos trazer mais visibilidade para os projetos com ações conjuntas com o
ministério de educação, com as universidades e as agências de fomento. Hoje, as
universidades não estranham mais quando recebem pedidos da garotada. Há
dois anos, foi criada uma bolsa de iniciação científica júnior e isso
facilitou muito. Muitas universidades hoje têm programas de pré-iniciação. Esse
processo de valorizar as iniciativas dos alunos da educação básica tem
rolado.
ÉPOCA - De quanto é essa bolsa para alunos da
educação básica?
Roseli - É de R$ 1 200 no total. O valor
pode parecer pequeno, mas para alguns essa é justamente a verba que falta para
ele poder comprar alguma coisa para o projeto ou para ele poder se deslocar até
a universidade. O mais importante é o valor simbólico dessa bolsa
porque ele abre a porta dos centros universitários, dos centros de pesquisa. Antes,
o orientador tinha medo de ter o aluno no laboratório. Agora, com a bolsa, ele
tem também um seguro para a pesquisa. Antes tínhamos muitas situações
informais. Hoje conseguimos ter situações formais de pesquisa com crianças e
adolescentes.
ÉPOCA - Vocês já conseguiram acompanhar o destino
das crianças que passam pela experiência científica?
Roseli - Estamos fazendo pesquisas com
alunos e professores que participaram de feiras e também alunos que submeteram
seus trabalhos mas que não foram aprovados para participar da feira. O que
aconteceu com essa criança, como ficou o envolvimento dela com a pesquisa? Os
resultados são animadores. Eles nos relatam que aprenderam a
desenvolver um trabalho seguindo o rigor científico, a respeitar todas as
etapas, a melhorar a pesquisa, a apresentá-la. Com as crianças que
participaram das feiras, as mudanças são ainda maiores. Eu mesmo me surpreendo.
Tem menino que eu vi no primeiro dia de feira e voltei a falar com ele no
terceiro dia e ele parece outra pessoa. Eles se desenvolvem muito depressa! O
fato de serem estimulados a conversar com pessoas diferentes sofistica o
discurso deles. Eles têm de treinar falar com um avaliador que ficará mais
tempo e com um jornalista que ficará 10 minutos com eles. Eles estão
conseguindo desenvolver essa capacidade de raciocínio, de pescar o que é mais
importante de acordo com o tempo e público.
ÉPOCA - Além da comunicação, que é superimportante,
que outros aspectos essas crianças e adolescentes desenvolvem?
Roseli - Muitos. Inclusive lançaremos um série
inspiradores, contando algumas histórias. Alguns dos alunos que passaram por
aqui estão começando o doutorado, outros criaram suas empresas.
Uma das alunas que mais me encanta participou de uma das primeiras feiras.Ela
tinha medo de ir ao Butantã. Mas o instituto foi até a escola pública
buscar esses alunos. Ela disse que não queria ir aos laboratórios porque tinha
medo dos bichos. O orientador do Butantã, que já tem muita experiência com
crianças, soube se aproximar e explorar esses receios dela, tranformando-os em
curiosidade. Ela queria saber porque o escorpião estava há tanto tempo
na Terra. Ela não era um aluna nota dez. Mas motivada por essa pergunta,
desenvolveu um trabalho belíssimo. Passou por uma rodada estadual, nacional e
participou de duas feiras internacionais. Essa menina entrou em biologia e ela
é absolutamente apaixonada pela área – e ela não era antes. Agora quer fazer
medicina porque descobriu a motivação da vida dela. Ela investigou o veneno do
escorpião para descobrir formas de usar as propriedades do veneno para curar as
pessoas. Já fez estágio no Butantã, no InCor (Instituto do Coração), sendo que
no InCor ela conseguiu o estágio com o contato de uma pessoa que viu o trabalho
dela aqui na feira. Então, essa rede de contatos tem de ser estimulada. Esse é
um investimento que só pode dar certo. É importante falar também dos
professores. Motivados pelos alunos, eles passaram a investir mais em suas
carreiras. Muitos desses professores estão voltando para fazer pesquisa em
educação em suas áreas. Muitos estão voltando a fazer mestrado e
especializações.
ÉPOCA - Há muita diferença entre a escola pública e
a privada?
Roseli - Essa é uma boa pergunta porque
me dá a oportunidade dedesmistificar um pouco o ensino das ciências e da
tecnologia. Aqui a gente tem escolas que ficam no interior do Maranhão, que
não têm estrutura, mas que têm o essencial, que é alguém que tem vontade
e que acredita que pode fazer a diferença. São alunos e professores que
aprendem a fazer perguntas qualificadas.
ÉPOCA - O que é preciso ter na educação básica para
fazer da pesquisa uma cultura?
Roseli - A principal coisa é acreditar que dá para mudar, que dá pra fazer ciência em qualquer circunstância. Quando vemos um vídeo com todos esses sotaques diferentes criando e tocando seus projetos, vemos que tudo é possível. Temos histórias de crianças pequenas que geraram impacto em suas comunidades e criaram soluções sem nenhuma infraestrutura.
No interior do Ceará, havia um problema com a pesca do camarão numa comunidade ribeirinha. A pesca estava acabando também com os camarões filhotes. Isso colocava a oferta de camarões em risco de extinção e também diminuía a rentabilidade dos pescadores. Os camarões pequenos pesam menos. A aluna que participou da Febrace estava triste porque ela teria de mudar para outra local se a pesca acabasse. Então, ela quis fazer um projeto que buscasse uma solução para esse problema. Ela projetou uma armadilha de camarões com uma rede de espaçamento maior para liberar os camarões pequenos. E ela também mudou a amarração. Antes era usado plástico, e os peixes estavam comendo plástico e morrendo. Com o material que ela usou, que é biodegradável e se desfaz rapidamente, ela também solucionou esse problema. O pai não queria que ela o testasse. Daí ela foi pescar com a armadilha escondida dele. Ele então percebeu que a armadilha pegava uma quantidade menor de camarões, mas eles eram maiores, então ele carregava menos peso e conseguia ganhar o mesmo dinheiro. Ela conseguiu convencer a comunidade inteira. Com a ajuda do professor orientador, ela conseguiu um contato com o Sebrae para criar uma empresa e replicar a solução. Crianças que passam por experiências como essas passam a acreditar que podem fazer qualquer cosia. É uma questão econômica, porque estamos fomentando futuros empreendedores. E é social porque a questão do desenvolvimento social só será equacionada se cada um acreditar que pode mudar a sua comunidade.
Roseli - A principal coisa é acreditar que dá para mudar, que dá pra fazer ciência em qualquer circunstância. Quando vemos um vídeo com todos esses sotaques diferentes criando e tocando seus projetos, vemos que tudo é possível. Temos histórias de crianças pequenas que geraram impacto em suas comunidades e criaram soluções sem nenhuma infraestrutura.
No interior do Ceará, havia um problema com a pesca do camarão numa comunidade ribeirinha. A pesca estava acabando também com os camarões filhotes. Isso colocava a oferta de camarões em risco de extinção e também diminuía a rentabilidade dos pescadores. Os camarões pequenos pesam menos. A aluna que participou da Febrace estava triste porque ela teria de mudar para outra local se a pesca acabasse. Então, ela quis fazer um projeto que buscasse uma solução para esse problema. Ela projetou uma armadilha de camarões com uma rede de espaçamento maior para liberar os camarões pequenos. E ela também mudou a amarração. Antes era usado plástico, e os peixes estavam comendo plástico e morrendo. Com o material que ela usou, que é biodegradável e se desfaz rapidamente, ela também solucionou esse problema. O pai não queria que ela o testasse. Daí ela foi pescar com a armadilha escondida dele. Ele então percebeu que a armadilha pegava uma quantidade menor de camarões, mas eles eram maiores, então ele carregava menos peso e conseguia ganhar o mesmo dinheiro. Ela conseguiu convencer a comunidade inteira. Com a ajuda do professor orientador, ela conseguiu um contato com o Sebrae para criar uma empresa e replicar a solução. Crianças que passam por experiências como essas passam a acreditar que podem fazer qualquer cosia. É uma questão econômica, porque estamos fomentando futuros empreendedores. E é social porque a questão do desenvolvimento social só será equacionada se cada um acreditar que pode mudar a sua comunidade.
ÉPOCA - A baixa qualidade da formação dos
professores é um impedimento para esse tipo de programa?
Roseli - Temos de ser realistas. Se eles tivessem uma formação melhor, seria mais fácil. Mas temos de trabalhar com o professor que está na escola. Quando quer, ele faz diferença. Temos exemplos de professores com formação muito precária e em realidades difíceis que fazem uma diferença incrível para esses alunos. Tivemos este ano, um professor de história que mobilizou uma escola inteira para desenvolver projetos de ciências. Ele não tem conhecimento na área, mas teve vontade e liderança. E, principalmente, acreditou nas crianças.
Roseli - Temos de ser realistas. Se eles tivessem uma formação melhor, seria mais fácil. Mas temos de trabalhar com o professor que está na escola. Quando quer, ele faz diferença. Temos exemplos de professores com formação muito precária e em realidades difíceis que fazem uma diferença incrível para esses alunos. Tivemos este ano, um professor de história que mobilizou uma escola inteira para desenvolver projetos de ciências. Ele não tem conhecimento na área, mas teve vontade e liderança. E, principalmente, acreditou nas crianças.
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